Manoel por Manoel
Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino
peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que
não pude fazer na infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando eu era
criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia
vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra
era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e
igual a um filhote de gafanhoto.
Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma
infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que
comparação.
Porque se a gente fala a partir de ser criança, a
gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de
um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão
comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me
ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que
essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia
transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o
menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.
( Do livro Memórias inventadas – As
Infâncias de Manoel de Barros, São Paulo: Planeta do Brasil, 2010. p. 187)
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